10 janeiro, 2021

CARTA AO MEU PAI AQUANDO DA SUA MORTE E QUE NUNCA LHE ENTREGUEI Agosto de 1986




Umas palavras que nunca lhe disse em vida mas sei que ele gostaria de ouvir.


Reconhecer méritos é uma coisa que na minha vida profissional é fundamental e eu faço-o constantemente. Mas reconhecer méritos a alguém que nos é directamente ligado por laços sentimentais é, no meu caso particular, no dele e no dos meus irmãos, por razões que se prendem com o nosso feitio, quase impossível.


De há onze anos para cá, depois de ele ter tomado a mais difícil decisão da sua vida, ou seja a de ele ir sobreviver em Rio de Moinhos, deixando os filhos em Lisboa, tive a sensação que a dúvida sobre a decisão tomada o atormentava constantemente.


Eu tinha 21 anos, a Carlota 19 e a Mimi 23. Estou certo que muitas vezes se terá perguntado se o acompanhamento e educação que tinha dado aos seus filhos, tinha sido suficiente e se nós não teríamos ficado ressentidos com essa sua decisão. 


Eu nunca tive coragem de lhe dar essas respostas. Nunca tive coragem de lhe dizer o quanto o admirava. A frontalidade com que ele encarava a vida, o nível com que resolvia os graves problemas que lhe eram apresentados, contrastando muitas vezes com o baixo nível com que algumas propostas lhe eram colocadas e a abnegação com que aceitava desilusões que tinha sobre atitudes de amigos e familiares ao longo dos anos.


A frontalidade do seu caracter, o espírito de família que ele sempre tentou que não fosse deteriorado pelas contingências da vida. A nobreza da sua pessoa. A vontade enorme de não vergar, de não se abandonar aos pontapés da vida. A consciência  das suas responsabilidades perante aqueles que de si dependiam e que ele gostava e respeitava fossem familiares ou não.


A educação que recebemos dele, a compreensão das indiscutíveis e inegociáveis questões de principio e de valores, que recebemos dele, não nos foram transmitidas oralmente mas sim pela observação da sua vida e das suas atitudes perante ela.


Tudo isto eu sinto que ele gostaria de ouvir e que eu nunca lhe disse.


Os homens passam pela terra a caminho de outra vida e o que eles deixam podem ser bens materiais e imateriais. O pai, bens materiais não deixa nada pois muitas desilusões teve e muito teve de lutar, mas a educação, os princípios, os valores a nobreza herdadas dos pais dele, isso ele mostrou que possuía e soube passa-las aos seus descendentes e familiares. Resta-nos a nós filhos aproveitar bem e passar aos nossos filhos as lições que ele nos deu na vida.



O filho Bernardo


manuscrito em Agosto 1986

transcrito em 2021